O Supremo Tribunal Federal condenou parlamentares federais por fatos definidos como crime. Após o trânsito em julgado da decisão, a perda dos mandatos será automática ou dependerá de decisão da Câmara dos Deputados?
O inciso I do art. 92, do Código Penal estabelece, como efeito específico e não automático, ao lado da perda de cargo ou função pública, a perda do mandato eletivo. Assim, é indispensável que a sentença condenatória declare a perda do mandato.
A Constituição Federal de 1988, todavia, em seu art. 15, III, assim estabelece: “É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de: (…) III – condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem os seus efeitos.”
O § 2º do art. 55 da Carta Magna, por outro lado, estabelece que a perda do mandato dos deputados e senadores, na hipótese de sofrerem “condenação criminal em sentença transitada em julgado”, será decidida pela casa legislativa respectiva.
São três normas distintas, que aparentemente não se harmonizam. A norma constitucional do art. 15, III, da Constituição Federal, afirma que a condenação criminal transitada em julgado implica a suspensão dos direitos políticos. A norma do § 2º do art. 55, da Carta Magna, informa que a condenação criminal transitada em julgado somente ensejará a perda do mandato do deputado e do senador, se a casa legislativa a que pertencer o parlamentar assim o decidir. E a norma do art. 92, I, do Código Penal, diz que a perda do mandato é efeito específico não automático, isto é, basta que a sentença condenatória assim o declare.
O Direito é um sistema harmônico e suas normas não se contradizem; impossível qualquer conflito entre elas. Como resolver o aparente conflito? Entre as três normas, duas estão no mesmo nível constitucional, e se sobrepõem, vinculando a outra, uma norma ordinária federal. A interpretação deve, é óbvio, iniciar-se pelas normas fundamentais.
A primeira delas cuida de direitos políticos de todos os cidadãos, a outra, de mandato eletivo de senadores, deputados federais e deputados estaduais, por força do que dispõe o art. 27, § 1º, da Constituição Federal. Interpretação apressada diria que a primeira é geral e a segunda é especial, afastando a incidência daquela. Penso que não é tão simples assim.
A norma do art. 15, III, da Constituição Federal, trata dos direitos políticos para dizer, em primeiro lugar, que sua cassação é vedada, proibida. Mas, o preceito admite a perda e a suspensão dos direitos políticos. Necessário, pois, distinguir cassação de perda, e de suspensão. Por cassação há de se entender a anulação, a invalidação, a usurpação, a subtração autoritária dos direitos políticos do cidadão, por ato unilateral, imotivado ou injustificado. O regime autoritário instalado no Brasil a partir de 1964 inaugurou a prática antidemocrática de tornar sem efeito mandatos eletivos, utilizando-se da expressão cassação. Também por aquele tempo foi comum a prática de suspender direitos políticos por dez anos.
Atento à história recentíssima de nosso país, o legislador constituinte de 1988 teve a feliz idéia de inserir, na Constituição, a proibição da cassação de direitos políticos, porquanto consistiria na pura e simples eliminação, violenta e arbitrária, dos direitos políticos do cidadão.
Possível é, todavia, a perda ou a suspensão dos direitos políticos. A norma do art. 15, III, da Constituição Federal, é clara: o indivíduo perderá seus direitos políticos apenas em duas únicas hipóteses: (a) quando tiver cancelada sua naturalização, por sentença transitada em julgado; ou (b) quando tiver declarada sua incapacidade civil absoluta.
Não podia ser de outro modo. Se o estrangeiro naturalizado perder a nacionalidade, não poderá, é de todo óbvio, gozar dos direitos inerentes apenas aos cidadãos brasileiros. Nesse caso, o indivíduo perde os direitos políticos que tinha, o de votar, o de ser votado e o de exercer atividade partidária. De notar que tais direitos foram por ele adquiridos em razão da naturalização e, ao depois, perdidos, como conseqüência do cancelamento da naturalização. E, como ficou expresso, somente ocorrerá a perda em processo regularmente instaurado e desenvolvido com respeito ao due process of law, e após o trânsito em julgado da sentença.
Declarada a incapacidade civil absoluta, igualmente perderá os direitos políticos.
A outra situação preconizada no mesmo art. 15, III, da Constituição Federal, é a da suspensão dos direitos políticos. Em verdade, os direitos políticos não são suspensos, mas seu exercício, sim, que fica proibido enquanto durar a condenação criminal transitada em julgado.
O comando normativo é no sentido de que o exercício do direito político será impedido quando seu titular for definitivamente condenado por sentença condenatória. Em outras palavras, o condenado definitivamente não poderá exercer direitos políticos, enquanto durarem os efeitos da condenação, podendo voltar a exercê-los quando tais efeitos tiverem cessado.
A primeira indagação surgida foi: o preceito constitucional do art. 15, III, seria auto-aplicável ou dependeria de regulamentação? O Supremo Tribunal Federal enfrentou a questão, e vale transcrever a ementa do Agravo Regimental no RMSA-22470/SP, julgado em 11-6-96, publicada no DJ, de 27-9-96, do qual foi relator o Ministro CELSO DE MELLO, assim: “A norma inscrita no art. 15, III, da Constituição reveste-se de auto-aplicabilidade, independendo, para efeito de sua imediata incidência, de qualquer ato de intermediação legislativa. Essa circunstância legitima as decisões da Justiça Eleitoral que declaram aplicável, nos casos de condenação penal irrecorrível – e enquanto durarem os seus efeitos, como ocorre na vigência do período de prova do sursis – , a sanção constitucional concernente à privação de direitos políticos do sentenciado. Precedente: RE nº 179.502-SP (Pleno), Rel. Min. MOREIRA ALVES.”
A Suprema Corte nominou essa suspensão dos direitos políticos de “sanção constitucional” que decorre de toda e qualquer condenação penal transitada em julgado.
Como, então, conciliá-la com a norma do § 2º do art. 55, da mesma Carta Constitucional, que exige a declaração, pela casa legislativa, da perda do mandato do parlamentar no caso de condenação criminal definitiva, se é de todo óbvio que o pressuposto do exercício de qualquer mandato eletivo é o gozo, pelo titular, dos direitos políticos?
A resposta depende de interpretação sistemática e teleológica.
A Constituição de 1998 criou um sistema de normas que assegura, aos parlamentares, a chamada imunidade parlamentar relativa, ou processual.
Penso que a norma do § 2º do art. 55 da CF insere-se nesse sistema de imunidades parlamentares processuais, estabelecido na Carta, segundo o qual: a) o parlamentar não pode ser preso, salvo em flagrante delito de crime inafiançável (art. 53, § 1º); b) o parlamentar não pode ser processado criminalmente, sem prévia licença da casa legislativa a que pertence (art. 53, § 1º); c) no caso de prisão em flagrante de crime inafiançável, os autos serão remetidos à casa legislativa em 24 horas, que, por voto secreto da maioria de seus membros, deliberará sobre a prisão e a formação de culpa (art. 53, § 3º); d) os parlamentares serão julgados pelo STF (art. 53, § 4º); os parlamentares não são obrigados a testemunhar sobre informações recebidas ou prestadas em razão do exercício do mandato, ou sobre as pessoas que confiaram os receberam as informações (art. 53, § 5º); e) caso condenado criminalmente em sentença transitada em julgado, a perda do mandato dependerá de decisão da Casa Legislativa, por voto secreto e maioria absoluta, mediante provocação da Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa (art. 55, § 2º).
Esse conjunto de normas inserto no texto original da CF, inequivocamente, tem como objetivo estabelecer as imunidades parlamentares processuais, que diferem das imunidades absolutas, previstas no caput do art. 53.
Do sistema da imunidade parlamentar processual, a exigência de prévia licença para o STF processar parlamentar federal foi amplamente criticada, tendo o Congresso Nacional promulgado a Emenda Constitucional nº 35, em 20 de dezembro de 2001, que o alterou.
O regime original da imunidade parlamentar processual foi, então, modificado, não havendo mais, de então, a necessidade de autorização legislativa para a instauração ou seguimento de processo penal contra parlamentar. A partir da EC 35, somente quando por fato cometido após a diplomação, o processo pode ter seu curso sustado. Houve, pois, mudança substancial.
Na ordem anterior, o processo contra o parlamentar dependia de licença da casa legislativa. Pela nova regra, o parlamentar pode ser processado, independentemente de licença, perante o Supremo Tribunal Federal, que, ao receber a denúncia, deverá comunicar à casa respectiva.
Se se tratar de crime cometido antes da diplomação, o processo terá seu curso normal, e não cabe sequer a comunicação pela Corte Suprema. Se, todavia, for instaurada a ação penal por crime ocorrido após a diplomação, a comunicação será feita, e o processo pode ser sustado, desde que a requerimento de um partido político representado na Casa do parlamentar, aprovado pelo voto da maioria dos membros da Casa.
O pedido de sustação do processo poderá ser feito a qualquer tempo, antes, é óbvio, da decisão final do Supremo Tribunal, e deverá ser apreciado pela casa no prazo de 45 dias de seu recebimento pela Mesa Diretora. Por decisão final, deve-se entender o trânsito em julgado, daí que, mesmo após a sentença final suscetível de recurso, poderá a Casa sustar o andamento do feito.
Deliberada, pela casa legislativa, a sustação do processo, ficará suspenso o curso da prescrição enquanto durar o mandato, reiniciando-se o processo, após, como se não tivesse decorrido tempo algum.
Com esse novo tratamento dado à imunidade processual, é de se perguntar se continua em vigor a norma do § 2º do art. 55 da Constituição Federal, exclusivamente no ponto que exige seja a perda do mandato do parlamentar que sofrer condenação criminal transitada em julgado “decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto secreto e maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa”.
Ora, essa norma só tinha sentido no regime anterior, quando a casa legislativa tinha o poder de decidir sobre a instauração ou continuidade de processo penal contra parlamentar. Era um preceito que reforçava aquele sistema de imunidades, reservando à casa legislativa o direito de condicionar a instauração e o prosseguimento da ação penal. Se a casa podia obstar o processo, podia, igualmente, autorizá-lo, mas, reservava-se-lhe a prerrogativa de obstar um dos efeitos da condenação. Um instrumento a mais para tornar o parlamentar imune a um dos efeitos do processo penal.
Com as modificações introduzidas pela Emenda Constitucional n° 35, impõe-se a indagação: a casa legislativa que não pode impedir a ação penal por crime cometido antes da diplomação poderá, ainda assim, impedir a perda do mandato decorrente de condenação criminal transitada em julgado?
A meu sentir, a resposta positiva constituiria uma incoerência inadmissível. Se não pode impedir o processo, e, portanto, a sentença condenatória, poderá impedir a sua conseqüência? Quem não pode o menos, pode o mais?
Se o trânsito em julgado de condenação criminal de um parlamentar referir-se a crime posterior à diplomação, terá sido sem sustação do processo pela casa legislativa, o que significa que a casa considerou, implicitamente, necessário o curso do processo. Como não sustou o processo, nem a sentença, poderá, ainda assim, sustar um dos efeitos da condenação? Poderá, ainda assim, o condenado conservar o mandato, por decisão do Parlamento?
Penso que há uma incompatibilidade gritante entre o novo sistema de imunidade processual e aquele dispositivo constitucional, o qual, por isso, a meu ver, está revogado tacitamente pela Emenda Constitucional nº 35/2001.
De conseqüência: a condenação criminal transitada em julgado acarreta automaticamente a suspensão dos direitos políticos do condenado, enquanto durarem os efeitos da condenação. Mesmo que a pena privativa de liberdade tenha sido suspensa pelo sursis, ou ainda que esteja sendo cumprida em regime aberto, não importa. Até no caso de ser o agente condenado a uma pena de multa, desde que haja o trânsito em julgado, seus direitos políticos ficam suspensos. Nesse caso, se ele estiver exercendo mandato eletivo, este será automaticamente perdido, em razão da suspensão dos direitos políticos, e não será recuperado com o pagamento da multa. Paga a multa, o condenado recupera os direitos políticos, mas não o mandato, que se extinguiu no momento exato da condenação.
A norma do art. 92, I, do Código Penal, na parte que trata da perda do mandato eletivo, é inaplicável, remanescendo seu comando apenas com relação à perda de cargo ou função pública. Não pode a lei ordinária contrariar a norma constitucional, nem regulamentá-la dispondo de modo contraditório. Não há menor harmonia entre a norma do art. 92, I, do Código Penal, e o preceito constitucional do art. 15, III.
Em razão desse preceito, é de se entender que a perda de mandato eletivo é conseqüência do efeito automático e genérico da suspensão dos direitos políticos que se dá em razão de toda e qualquer condenação penal transitada em julgado pela prática de crime, e não apenas efeito específico, não se aplicando, pois, o disposto no art. 92, I, do Código Penal, mas o preceito constitucional.
Se um dos requisitos para o exercício de qualquer mandato eletivo – uma condição de elegibilidade – é o pleno exercício dos direitos políticos (art. 14, § 3º, II, CF), de todo óbvio que aquele que tiver seus direitos políticos suspensos, pelo tempo que durar os efeitos da condenação, não poderá, durante esse lapso temporal, exercer qualquer mandato eletivo.
Se o condenado com sentença transitada em julgado não pode ser eleito, não pode, igualmente, continuar o exercício do mandato para o qual tiver sido eleito anteriormente à condenação. É da mais límpida obviedade.
Ney Moura Teles é advogado, formado, em 1984, pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, da USP. É professor licenciado de Direito Penal do UniCEUB (Centro Universitário de Brasília). Ministrou as disciplinas de Direito Penal I e Direito Penal III. É autor de “Direito Penal”, publicado originalmente pela LED – Editora de Direito, e depois pela Editora Atlas, e adotado em inúmeras faculdades de Direito do país. Foi professor na Escola Superior da Magistratura do Estado de Goiás, na Escola Superior de Magistratura do Distrito Federal e no Instituto Processus, em Brasília.
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