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Ney Moura Teles

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Tempo do crime e contemporaneidade da conduta e do objeto jurídico do crime Do Art. 1° Da Lei 8.137/90

     Não há crime sem lei anterior que o defina, diz a Carta Magna, no inciso XXXIX do art. 5º.
     Este princípio não diz respeito somente à necessidade de que haja lei penal definindo crimes e cominando penas. Quando o princípio permite que o legislador construa tipos penais contendo elementos normativos, está exigindo também que a norma sobre a qual se edifica o elemento normativo seja, igualmente, prévia ao fato. Em outras palavras, a presença do elemento normativo do tipo deve ser contemporânea do momento em que o sujeito realiza a conduta.
     Veja-se, como exemplo, a norma penal contida no art. 62, da Lei nº 9.605, que derrogou a norma do art. 165 do Código Penal: “Art. 62. Destruir, inutilizar ou deteriorar: I – bem especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial; II – arquivo, registro, museu, biblioteca, pinacoteca, instalação científica ou similar protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial: Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa. Parágrafo único. Se o crime é culposo, a pena é de 6 (seis) meses a 1 (um) ano de detenção, sem prejuízo da multa.”
     Esse tipo elegeu, como bem jurídico protegido, o patrimônio artístico, arqueológico e histórico tombado pela autoridade pública, federal, estadual ou municipal, especialmente protegido por lei, ato administrativo ou decisão judicial.
     O tipo só incide sobre coisa que tenha sido formalmente tombada, nos termos da legislação pertinente, ou especialmente protegida. Se tem valor histórico, arqueológico, artístico, mas não foi regularmente tombada ou especialmente protegida, não haverá essa incidência típica, mas o crime será o de dano, qualificado se pertencer a ente público, simples se particular.
     Cuida-se de norma penal em branco que será completada pela norma contida em lei, ato administrativo ou pela decisão judicial que declarar a proteção especial do bem.
     É de toda obviedade que o ato administrativo ou a decisão judicial integra o elemento normativo desse tipo, sem o que ele não se realiza. É mais óbvio ainda que só pode haver tipicidade em relação às condutas que ocorrerem após a edição da norma declarando o bem tombado.
     Assim, enquanto tramitar, no âmbito da administração, o processo que tem como fim declarar o tombamento do bem, ou, no âmbito do legislativo, o projeto de lei que declara o bem especialmente protegido, qualquer conduta que o danificar não se ajustará ao tipo legal de crime da Lei 9.605/98. Somente as condutas realizadas após a vigência do ato, administrativo ou legal, que considera o bem especialmente protegido, podem ser consideradas típicas.
     Tem-se, aí, um tipo penal que contém como objeto jurídico uma coisa que deve ser valorada com base num elemento normativo, tal qual ocorre com o tipo do art. 1º da Lei 8.137/90. O objeto jurídico só tem existência com a edição do ato administrativo que torna a obrigação jurídico-tributária exigível. Só o bem jurídico existente é que pode ser objeto de ataque.
     Antes que o objeto jurídico tenha existência jurídica, o que se pode atacar é, como no caso da lei 9.605/98, o anteprojeto ou projeto que visa a constituir o bem jurídico, a sua expectativa, não o bem em sua essência.
     Para ser incriminada tal conduta, só com prévia lei que a definisse como crime.
     A lei penal, tanto quanto a norma, legal ou administrativa, que completa a lei penal em branco, não retroage, para se aplicar aos fatos praticados antes de sua vigência. É o que nos diz o princípio constitucional da legalidade. A norma administrativa, que dá vida ao bem jurídico protegido por norma penal que contenha elemento normativo, igualmente, não pode retroagir para ter incidência sobre os fatos praticados antes de sua edição.
     A lei deve, sempre, ser anterior ao fato, anterior à conduta. São os tipos penais que dão sustentação ao princípio da legalidade. Quando os tipos penais empregam elementos normativos, é óbvio que o elemento normativo deve, igualmente, ser anterior à conduta. O elemento normativo é a lei. Deve pré-existir, isto é, ser contemporâneo à realização da conduta.
     Inadmissível que uma conduta já realizada possa ser valorada como típica com base em eventos futuros, incertos, inexistentes no tempo de sua prática e que, para terem existência, dependem de atos posteriores da administração ou do próprio legislador.
     Disse o SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, no voto do Ministro Celso de Melo (HC 90957), que, enquanto não concluído o procedimento administrativo, o fato está desvestido de tipicidade penal, o que torna impossível juridicamente a persecução penal, porque fatos atípicos não justificam o inquérito e o processo. É o que está também na Súmula Vinculante n° 24: “Não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incs. I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo.”
     É verdade. Perfeito o raciocínio. Incensurável a afirmação, porque ausente o elemento normativo, inexistente a obrigação jurídico-tributária exigível, não pode ser atingido o bem jurídico.
     Verdade maior, porém, é que fatos desvestidos de tipicidade penal não podem, ao depois, ser com ela vestidos, com roupagem construída após sua realização. A veste da tipicidade se dá no momento em que o fato ocorre, e o crime ocorre no momento em que a conduta se realiza e não no momento em que o resultado naturalístico acontece. Se o resultado não é contemporâneo à conduta, nem por isso a conduta deixa de ser típica, e, enquanto ele não acontece, o fato, ainda assim, é típico.
     É que a tipicidade de um fato deve sempre ser verificada ao tempo da conduta. Mesmo nos casos em que o resultado não ocorra no mesmo momento da conduta, o bem jurídico atingido deve estar vivo, naquele momento da conduta. É o que decorre do preceito contido no art. 4º do Código Penal: “considera-se praticado o crime no momento da ação ou da omissão, ainda que outro seja o momento do resultado”.
     Ora, conquanto o objeto jurídico do crime do art. 1º da Lei 8.137/90 – tributo, isto é, a “obrigação jurídico-tributária exigível” -, só tem vida, ou seja, só nasce, só vem ao mundo jurídico a partir da chamada preclusão administrativa, ele só pode ser atacado, atingido, lesionado, depois de ter nascido, não antes. A obrigação jurídico-tributária exigível só pode ser suprimida ou reduzida por conduta que ocorra após sua existência. Só são típicas, portanto, as condutas que causem à sua supressão ou redução. Não podem ser típicas aquelas condutas realizadas antes da sua existência, porque visavam tão-somente a suprimir ou reduzir um valor que não era a obrigação jurídico-tributária exigível.
     Conquanto o tipo deva ser assim interpretado, é de toda obviedade que só pode incidir sobre condutas que se realizem após o surgimento da obrigação jurídico-tributária exigível. Ou seja, após a ocorrência da chamada preclusão administrativa. É que, segundo o raciocínio do Ministro Cezar Peluso, consagrado na Súmula Vinculante n° 24, somente após o lançamento definitivo, é que existe o elemento normativo, tanto que, antes dele, nem crime há. Como somente a partir da preclusão administrativa é que surge o tributo como obrigação exigível, é somente a partir daí que o agente pode suprimi-lo ou reduzi-lo.
     A solução dada pelos tribunais, na parte em que manda seja instaurado o processo após o lançamento definitivo, por tudo quanto se disse, não se harmoniza com os postulados da Teoria Geral do Crime.
     O equívoco, contudo, não está na formulação inicial do Ministro Cezar Peluso, mas sim nos efeitos que dela extraíram as outras decisões, que se lhes seguiram, segundo as quais, concluído o procedimento administrativo, com o lançamento definitivo, aí exsurgirá a tipicidade do fato, permitindo-se, de então, o inquérito e o processo, iniciando, daí o curso da prescrição.
     Tem-se, por esse raciocínio, que, aquela conduta realizada pelo agente, completa, exaurida, não é típica, durante certo período de tempo, e, depois, quando a autoridade fazendária constitui definitivamente o crédito tributário, aquela mesma conduta, antes atípica, torna-se típica, por ato da autoridade administrativa.
     É um absurdo jurídico a conduta “X” ser atípica, desde o dia em que realizada, mas, depois, por decisão do administrador, tornar-se típica. Uma agressão inonimável ao princípio constitucional da legalidade.
     Imaginar que é típica a conduta praticada antes da existência da obrigação jurídico-tributária exigível, é imaginar o absurdo, ou seja, uma conduta que atinge um bem jurídico que não existe e que pode até nem vir a existir. O lançamento pode não ser constituído definitivamente. Pode ser anulado.
     Nunca se pode olvidar que o juízo penal se dá sobre o comportamento, não sobre o resultado, que não é, nunca foi, nem será, o elemento diversificador dos tipos. Idênticos resultados podem decorrer de condutas distintas, que, estas sim, são valoradas pelo Direito Penal. E as condutas típicas sempre se voltam contra um determinado bem jurídico, que lhe é contemporâneo. Impossível punir alguém, com a mão pesada do direito penal, pela prática de conduta que se volta contra aquilo que, no exato momento em que é realizada, não é o bem jurídico protegido, porque ainda inexistente como tal.
     Então, conquanto incensurável a afirmação de Peluso, que todos os demais Tribunais vêm reafirmando, de que “tributo”, o elemento normativo do tipo do art. 1º da Lei 8.137/90, é a “obrigação jurídico-tributária exigível”, a qual é o objeto jurídico do tipo, deve-se ter, como conclusão inarredável, harmônica com o Direito, que só se realiza o tipo quando o agente pratica uma das condutas descritas nos incisos I a V, do art. 1º, após a constituição definitiva do crédito tributário, ou seja, após o lançamento definitivo.
     Quando, nos autos de um processo penal existam apenas provas ou indícios de condutas anteriores ao lançamento definitivo, tais fatos não se ajustam ao tipo do art. 1º, e, por isso, são atípicos. No dizer de Celso de Melo, estavam desvestidos de tipicidade penal, e, no dizer da correta interpretação das leis penais, continuam desvestidos de tipicidade penal. Vão continuar para todo o sempre desvestidos da tipicidade penal do art. 1º da Lei 8.137/90. E não podem ser vestidos de tipicidade por uma decisão administrativa posterior à conduta, que, como num banho lustral, voltasse no tempo para tornar típica a conduta que não o é.
     O mesmo se dá nos casos em que a omissão de informações ou a prestação de declarações falsas é feita à autoridade fazendária e esta, verificando a falsidade ou a omissão, efetua o lançamento de ofício, constituindo, aí, o crédito tributário, que, levado ao conhecimento do contribuinte, deixa de impugná-lo.
     O lançamento não impugnado será o definitivo, mas o crime do art. 1º da Lei 8.137/90 não se tipificou, porque, quando da conduta do agente não havia obrigação jurídico-tributária exigível, que só vem ao mundo jurídico com o lançamento de ofício que se tornou definitivo em face da ausência de impugnação.

Ney Moura Teles é advogado, formado, em 1984, pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, da USP. É professor licenciado de Direito Penal do UniCEUB (Centro Universitário de Brasília). Ministrou as disciplinas de Direito Penal I e Direito Penal III. É autor de “Direito Penal”, publicado originalmente pela LED – Editora de Direito, e depois pela Editora Atlas, e adotado em inúmeras faculdades de Direito do país. Foi professor na Escola Superior da Magistratura do Estado de Goiás, na Escola Superior de Magistratura do Distrito Federal e no Instituto Processus, em Brasília.

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